Hoje passei naquela rua onde um dia fizemos desaparecer dois pacotes de línguas de gato, a sorrir. Era ainda o tempo dos sóis derretidos e dos olhares que perduravam. Era o tempo das meias palavras que bastavam. Passei lá hoje e vi-nos sentados no chão, a dizer disparates como
-para sempre
entre línguas de gato. Apetecia-me arrancar aquele pacote troçador das minhas próprias mãos, espalhar todas as línguas de gato pelo chão e dizer-me o futuro, para evitar tristezas maiores. Mas depois olhei melhor os meus gestos de felicidade na altura. Dir-me-ia então apenas
-faças o que fizeres, nunca faças madeixas azuis. trust me. ficam-te mal
porque quando meses depois surgiu a típica conversa, eu precisei que as pessoas, ao olhar para mim, reparassem em algo que não fosse as minhas lágrimas interiores.
Quando saí de casa, vi uma mulher a comer línguas de gato, sentada no chão e encostada à parede do meu prédio. Parecia falar sozinha sem mexer os lábios. Arrepiei-me. Noutros dias, ter-lhe-ia perguntado se estava bem. Hoje pus-me a pensar que nós também somos assim. Falamos um com o outro sem mexer os lábios. Pergunto-me se também arrepiaremos as pessoas à nossa volta.
É incrível. O modo como as pessoas são, o modo como se ignoram olhos nos olhos. Nunca sejas assim. Nunca passes por mim sem me ver, mesmo que eu esteja a comer línguas de gato no chão. Pede-me ao menos uma, diz que te importas.
Não tenho fome. Não sei o que estou aqui a fazer. Pedi uma garrafa de água e sentei-me porque estou à tua espera. Seria estúpido ocupar uma mesa se não estivesse a consumir. Mas pareço aquelas fãs malucas que vão para a frente dos palcos. Meu deus, pareço mesmo! Estou à espera que entres cintilante e que arrebates o mundo com o som da tua voz. A única diferença é que dirias
-um galão e uma meia-torrada.
E lá vens tu, de pólo verde escuro (mas que tem a alma de um blusão de cabedal). Sei a tua coreografia de cor. Apoias a mão esquerda no balcão, e a direita rouba dois guardanapos enquanto esperas que te atendam.
-um pacote de línguas de gato.
deste meia volta e saíste. Pelo caminho, deixaste cair uma língua de gato. (Será possível não conseguires abrir uma embalagem como deve ser?) Hoje improvisaste e eu fiquei mesmo confusa. Não sei a letra desta música. Devia seguir-te para descobrir?
-às onze na minha casa. traz línguas de gato.
Quer-me parecer que na minha terra sempre chamámos línguas de gato a morangos e um bom champanhe. Não te atrevas a desmentir.
-desculpa, atrasei-me. Encontrei uma amiga pelo caminho e distraí-me com as horas.
Hum.
-mas trouxe línguas de gato.
Não gosto.
-oh. é que olhei para o bicho engraçado na embalagem e lembrei-me de ti.
How sweet. Mas devias era ter-te lembrado de mim quando o tempo passava e tu estavas distraído com as horas. (E é isto que um dia te vou conseguir dizer, sem vacilar. E depois vou-me levantar, roubar-te uma língua de gato e dizer
-e eu gosto de línguas de gato, parvo. Devias saber e ter discutido comigo.)
Quanto estás triste, é o que te digo, minha língua de gato.
-our world will always fit in a soap bubble, and still fly around.
Safe and free. No one can touch us.
Safe and free. No one can touch us.
Post comemorativo dos 6 meses do blogue.